O desenvolvimento do capitalismo distópico

Leon Ayres (abril de 2019)

Trabalho e lucro

O lucro, segundo Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx, é a apropriação da mais-valia através da cadeia produtiva da economia. 

Smith considerava que o lucro estava associado à propriedade privada do capital. A  renda de um empresário dependia do volume dos seus investimentos. Para ele, o lucro é criado pelo mercado pela lei da oferta e da procura. 

Para Ricardo, a renda do empresário é o que sobrava depois de pagar os salários e os custos de produção. Quanto maiores os custos salariais, menores seriam os lucros. Nesta teoria, a qualificação do operário traria melhores taxas produtivas e melhores salários.

Marx utiliza a compreensão de Ricardo, mas considera que o desenvolvimento da técnica individual utilizada na produção não aumenta a produtividade nem os salários. Ele coloca o trabalho como parte da mercadoria a ser produzida, sejam produtos ou serviços. As características das técnicas de produção coletiva, assim como as forças políticas e econômicas é que vão definir o valor dos salários. Isto seria resolvido na luta-de-classes, onde quem tiver mais força conseguirá impor melhores lucros ou salários.

Estas teorias vêm sendo utilizadas nos últimos cem anos e têm balizado as correntes político-econômicas. Veja o artigo “Do liberalismo utópico ao liberalismo científico”.

Capitalismo desenvolvimentista 

Esta fase do capitalismo tem como fundamento a apropriação da mais-valia através da cadeia produtiva da economia. O trabalho gera os produtos e serviços.

Desta forma, para alavancar a economia, será necessário que a massa de operários tenha empregos e bons salários. Com bons salários haverá compras de bens e serviços. O comércio alavancado faz encomendas nas indústrias que conseguem aumentar a sua produção. O setor de serviços cresce em função da melhoria geral e ajuda a alavancar a economia. O setor agrário e a pecuária são beneficiadas pelo mercado interno.

Este tipo de capitalismo foi adotado pela socialdemocracia do pós-guerra, como forma de conciliar a luta-de-classes (pacto social) e distribuir os lucros entre os empresários e operários de forma que beneficiassem aos dois. 

A Alemanha, tendo o tipo de governo que for, sempre adotou este tipo de capitalismo internamente. Bons salários, bom comércio, uma boa política industrial e bancos estatizados.

Estatizados? Os banqueiros foram expropriados pelo Estado? Não, banco estatizado é um banco que tem a obrigação de investir em produção. Os municípios alemães traçam as políticas de investimentos dos bancos conforme as características das regiões onde atuam. As regiões têm suas aptidões produtivas. Os bancos investem nessas aptidões. No Brasil, quem disser que gostaria de ver os bancos estatizados seria taxado de comunista. A Polônia adotou esta mesma política de obrigar os bancos a investirem conforme as políticas de produção baseadas nas aptidões de suas regiões e tem passado ao largo da crise econômica mundial. A Polônia, inclusive, tem um governo de extrema-direita.

Nestes países os bancos não reclamam. Têm uma margem de lucros menor, mas têm garantia que o país não passará por sobressaltos e poderão criar políticas de médio e longo prazo.

As “crises” capitalistas

Após a “crise”, ou calote, de 1929 o mundo passou a regulamentar a economia para evitar novas “crises”. Este acordo de regulação começou a ser negociado no Tratado Bretton Woods. Uma série de regras foram criadas para dar aos norte-americanos a legitimidade e hegemonia financeira e econômica. Neste período foi criada a paridade ouro-dólar, tornando esta moeda a referência internacional. 

Quando a Europa avançou na criação do seu bloco econômico, que se tornaria a União Européia, criou a sua moeda internacional, que atualmente se chama Euro. Neste período, o governo Nixon quebrou unilateralmente o acordo de Bretton Woods e o valor do dólar passou a ser flutuante, baseando-se na sua relação com o petróleo. Ou seja, novas “crises” (ou calotes) à vista. O primeiro deles, a crise do petróleo. Quem tinha dólares e pouca força econômica, “perdeu”.

Nos governos Busch, pai e filho, a regra era acabar com as regras. Sistema financeiro livre para provocar as “crises” que achassem conveniente para aumentar os lucros através da acumulação de capital. Bolhas econômicas permitidas, assim como investimentos sem o mínimo de controle. Surge então, em 2008, a “crise” imobiliária americana. De volta à 1929, onde o capitalismo rentista, que não é obrigado a investir em produção, volta a lucrar às custas de uma tragédia financeira, industrial e aumento mundial da pobreza.

O capitalismo rentista ressurge com força e se opõe ao capitalismo desenvolvimentista.

Capitalismo rentista

Seu desenvolvimento se consolida entre a Década de 70 e 80. Os governos Busch fazem a sua parte. Enquanto Busch filho enchia a cara de whiskey o seu vice Dick Cheney enchia os bolsos dos rentistas. O mundo via ressurgir o rentismo, agora em sua fase mais rica e poderosa.

Nesta fase, o capitalismo começa a prescindir das forças produtivas para alavancar sua acumulação de capital. Ao invés de criar as condições para melhores salários, melhoria do comércio e da indústria, os rentistas vão direto no bolso dos mais fracos e tiram o capital. Através das grandes corporações financeiras, geram investimentos em papéis, que geram mais investimentos e lucros sem que haja nenhuma contrapartida em produção. É o capital financeiro gerando apenas capital financeiro.

Acumular capital ocupando os governos, traçando políticas de drenagem do capital das indústrias e bancos mais fracos é bem mais rápido do que alavancar a economia pelo modelo desenvolvimentista. O processo desenvolvimentista é mais sólido, porém mais lento. Por que esperar tanto tempo? Como se dizia em 1929, “quem tem dinheiro manda”.

Mas o rentismo também cria condições conflitantes para o capitalismo. Daí surge a verdadeira crise para o capitalismo, a deterioração das forças produtivas. As indústrias perdem sua capacidade produtiva (desindustrialização), o desemprego aumenta, os salários diminuem e o comércio vende menos. Este é o neoliberalismo que surfa nas ondas da globalização, acumulando capital através do rentismo em todo o planeta.

Surgem os “novos donos do mundo”, imperadores que, através das suas grandes corporações, dominam e sugam o sangue de uma série de países. Em 2001 esta odisséia não se dá apenas no espaço, pois são donos das maiores empresas de tecnologia, mas também na interferência direta nas políticas dos países e nações, criando guerras e movimentos separatistas. Destruir ou separar, para comprar barato, vender serviços de recuperação através da engenharia, endividar as populações através de créditos bancários, comprar o futuro dos povos através de aposentadoria privada que nunca ocorrerá, vender celulares e desejos, esta é a política adotada pelas grandes corporações. No início do Século XXI os novos donos do mundo tinham cerca de um quatrilhão e duzentos trilhões de dólares para comprar à vista o que quisessem. Isto é cerca de vinte e cinco vezes o PIB do mundo. Daria para acabar com a miséria, a fome, as doenças em todo o mundo e ainda continuarem trilionários!

Capitalismo-de-Estado

A China, que é mais inimiga dos russos que dos americanos, fez uma opção diferente para o desenvolvimento capitalista. Adotou o que nos anos oitenta se denominava capitalismo-de-estado. Trata-se de um desenvolvimento capitalista planejado e controlado pelo Estado. 

Após a tomada do poder pelos Maoístas, foi decidido como política prioritária o desenvolvimento do setor primário para alimentar a sua grande população que se encontrava em estado de miséria. 

Para alavancar a acumulação familiar da riqueza no campo, no final do Século XX, a China adotou a propriedade privada no campo. Para fortalecer o mercado interno a China criou o sistema previdenciário. Desta forma, ao invés do cidadão chinês “guardar o seu dinheiro debaixo do colchão”, ele poderia aderir ao sistema previdenciário e poupar o que estava guardando como reservas. A poupança alavanca investimentos e cria um mercado consumidor.

No segundo momento a China decidiu investir no seu setor secundário, através de joint-ventures.  Eram parcerias entre o governo chinês e empresas multinacionais, que permitiam que estas indústrias recebessem incentivos para montarem suas estruturas produtivas na Mandchúria. A mão-de-obra era muito barata e não se pagava pelo local onde eram construídos os parques industriais. A exigência era: entra capital e saem produtos. Remessas de lucros eram taxadas de forma severa. As empresas se tornaram grandes exportadoras, os salários melhoraram e a China começou a incorporar tecnologias. O mundo reclamou muito dos chineses acusando-os de copiar produtos e vender por um preço mais baixo. O setor secundário chinês cresceu muito e hoje tem tecnologia para fazer produtos mais baratos, tanto de baixa quanto de alta tecnologia. A China também desenvolveu tecnologia militar capaz de manter suas disputas apenas no campo comercial.

Uma das características do capitalismo-de-estado é que o Estado cuida para que o investidor e empreendedor industrial tenham mais garantias de sobrevivência. O próprio Estado indica quais setores estão mais favoráveis para crescimento e neutraliza as ações predatórias das empresas maiores que acabam engolindo as mais fracas. Com isto a China pôde planejar e controlar o seu crescimento que já esteve a onze por cento ao ano!

A China entrou no mercado financeiro e industrial internacional com uma proposta um pouco diferente. Criou um banco que empresta dinheiro a juros bem mais baixos e faz parcerias econômicas diferenciadas das grandes corporações. O objetivo das grandes corporações é acumular rapidamente o capital e comprar quem faz negócios com elas. A China empresta dinheiro mais barato, faz parcerias comerciais e tecnológicas visando o desenvolvimento do parceiro comercial. Em troca, a exclusividade nos negócios. O Negócio da China prosperou. 

Esta é a política capitalista que ameaça aos norte-americanos, que vêm perdendo espaço comercial há alguns anos. Por isto os BRICS têm que ser destruídos, gritam todos os governos americanos. E nesta hora os russos são grandes aliados.

Mas há uma grande sinuca-de-bico nesta história. Os chineses são os maiores parceiros comerciais dos norte-americanos e os EUA são os que mais compram da China. Um não pode destruir o outro. 

Um novo conflito imperial

O capitalismo do Século XXI herda a deterioração das suas forças produtivas, a voracidade pela acumulação incessante do capital e seus conflitos internos.

Estamos vendo em quase todo o mundo um movimento político que está se tornando um grande desafio. Não é algo muito fácil de compreender. É o capitalismo em sua nova fase, pós-neoliberal e com sequelas trazidas pela globalização.

A voracidade pelo acúmulo de capital é inerente ao desenvolvimento do capitalismo. Se ele para de se alimentar, morre. Os novos donos do mundo sabem disso e atualmente combatem todos aqueles que não estiverem dispostos a alimentar, na boquinha, este tubarão branco faminto. Sabem que qualquer retrocesso na acumulação de capital poderá representar prejuízos financeiros que os colocarão em risco diante dos seus concorrentes  financistas. Um tubarão faminto pode devorar um outro da sua mesma espécie. 

O modelo desenvolvimentista que é predominante na socialdemocracia, obviamente, também representa perigo para os financistas. Para alavancar a economia gerando empregos, salário e industrialização, o modelo desenvolvimentista socialdemocrata tem que recapitalizar e fornecer crédito para os operários. Isto representa drenar capital do sistema financeiro para a população assalariada. 

Por isso o capitalismo financista está empenhado em eleger setores retrógrados, em diversos países, que ficam à serviço das corporações como garçons ávidos por gorjetas. Este tipo de atuação é muito antigo, fez parte das táticas formadoras das ditaduras latinoamericanas, africanas e asiáticas.  

O neoliberalismo trouxe sequelas para parte das forças econômicas que não participaram do banquete da globalização. Produtores pequenos e médios, em diversos países, foram prejudicados.  

Nos EUA, estes produtores foram afetados após a “crise” de 2008. Quando os EUA saem de uma crise econômica, crescem entre três e quatro por cento. Nesta última o crescimento foi pífio. As grandes corporações ganharam com a “crise”, mas o pequeno e médio perderam. Isto gerou o descontentamento aproveitado nas últimas eleições presidenciais. O que ganhou as eleições não foram as fake-news nas redes sociais, foi a base política do interior do país que foi prejudicada nesta manobra globalizada. Por esta razão estamos vendo nos EUA um movimento nacionalista mais forte. Foi assim que os republicanos aproveitaram esta oportunidade de retornar ao poder através de um discurso nacionalista de reconstrução dos EUA. Não foi a direita quem deu força ao Trump. Foi a conjuntura em declínio, com quedas de produção e reduções salariais, que fizeram brotar uma visão nacionalista e o reaparecimento da extrema-direita americana.

Para estes setores econômicos não é muito bom participar da globalização. Esta cria regras comerciais que facilitam a vida das grandes corporações, mas prejudicam os pequenos e médios. Produzir e comercializar só é fácil para quem está na hegemonia da globalização.

E este conflito de interesses entre os que não se beneficiam da globalização também está acontecendo na Europa. 

No Reino Unido, o empreendedor inglês, que construiu a sua empresa e alavancou o seu país, agora tem que se curvar às regras da União Europeia. Regras que favorecem mais aos empresários alemães e franceses do que a ele. Regras que também pioraram a sua produtividade e estão rebaixando o poder aquisitivo da população de classe média, média e baixa principalmente. Então grande parte da população preferiu sair da União Europeia e voltar ao antigo modelo inglês. Mais uma vez, as quedas de produção e reduções salariais, fizeram brotar uma visão nacionalista.

Em todos os países onde o empresariado nacional está sendo prejudicado pela globalização a alternativa está sendo o movimento nacionalista. Não é a extrema-direita que está ditando o desenrolar do processo, atua apenas como uma doença oportunista. 

Rumo ao capitalismo distópico

Como vimos, o neoliberalismo e o capitalismo financista prescindem parcialmente das forças produtivas. Já há muita riqueza acumulada, é só drenar contiguamente para as veias das grandes corporações.

Mas é possível prescindir quase que totalmente destas forças produtivas em razão do avanço tecnológico. A robotização, a tecnologia da informação, a interação entre os equipamentos já são instrumentos de acumulação de um novo tipo de capital que ainda está obscuro. E para os novos donos do poder é melhor que assim fique.

A produção e o consumo de bens de alta tecnologia já ocupam grande parte dos ganhos de capital representados por bens de consumo. Está ficando cada vez mais barato, fazendo com que os lucros sejam exponenciados em um tempo mais curto. 

O que o novo capitalismo está prescindindo é do próprio ser-humano. Estes podem ser descartados como objetos inúteis se não se tornarem o novo capital. Para o novo capitalismo o ser humano, como um todo, já é um capital. Quanto menos capital o indivíduo representar, menos ele terá valor nesta nova fase.

Os civis mortos na guerra, os assassinatos de pobres nas cidades, as crianças desnutridas na África e várias outras mazelas enfrentadas pelo seres-humanos não são mais emotivantes e nem  mobilizantes. A morte, principalmente de quem não tem poder, não é mais um tabu. Neste cenário ressurgem as linhas que se identificam com este padrão ideológico resultante destas relações político-econômicas. O preconceito de cor,  atividade sexual e a classe social acentuam-se. Ressurgem os movimentos nazistas. 

A utopia pressupõe um futuro que será alcançado a partir de algumas rupturas com o presente. A distopia é um presente sem futuro vivido através da opressão. Estas são experiências de muitos povos neste momento e que não interessam a este capitalismo que alguns classificam como distópico. A perspectiva da distopia é a  humanidade experimentar os instrumentos de dominação dos que não são capitais econômicos: a opressão, o desespero e a agonia.

O que estamos vendo no mundo é uma disputa entre o capitalismo pós-neoliberal e o seu filho, o capitalismo distópico. É Édipo tentando matar o seu pai. Por isto vamos ver alguns setores liberais brigando com setores que são erroneamente classificados como extrema-direita. 

Para tentar reverter esta situação é necessária uma análise diferenciada. Não podemos fazer uma avaliação simplória achando que a  extrema-direita esteja dando a linha política e tomando o poder. Mesmo com o desaparecimento ou diminuição da extrema-direita, o capitalismo distópico ainda existirá. 

O capital tecnológico da informação

Imagina-se que os robôs humanóides um dia irão se virar contra a humanidade. Bobagem, estes serão inofensivos e se tornarão eletrodomésticos. Serão comprados no supermercado como os computadores atuais, que já fizeram parte do imaginário como futuros dominadores da humanidade. A robótica deve ajudar bastante a medicina, e neste caso, a sua utilização será extraordinariamente útil. Os robôs que dominarão a humanidade já existem, estão dentro dos celulares e por trás deles há apenas seres humanos e softwares. 

As pessoas vivem diante dos seus celulares e não sabem que estão sendo dominados por robôs. Eles não são visíveis. São softwares simpáticos, aparentemente inofensivos e usados para comunicação com as pessoas. Eles monitoram a vida das pessoas, conhecem seus costumes e desejos, sugerem produtos baseados nos seus símbolos e muitas vezes os hipnotizam. As pessoas não conseguem mais ficar sem olhar para eles e responder imediatamente aos seus avisos e chamadas. Gera ansiedade e compulsividade, que servem para alavancar o consumo de produtos, serviços e remédios. Um milagre para multiplicação de síndromes. Tudo isto é capital. Se você não é ansioso, nem compulsivo, não atende de imediato os celulares ou softwares, cuidado, você pode não ser interessante para este novo tipo de capitalismo. Então terá que ser um ser-humano independente!

Para o capitalismo distópico é necessário que o maior capital de todos, o ser-humano, deva ter seu cérebro dominado. É para aí que estamos indo. Vemos isto nos filmes de ficção científica, onde empresas do mal tentam dominar o cérebro das pessoas para dominar o mundo. 

Na vida real os donos do mundo estão fazendo o mesmo, com instrumentos diferentes que dos filmes de ficção científica, cujos donos das empresas do mal, são rejeitadas pelo público. Na vida real os donos dessas empresas, às vezes são considerados filantropos e alguns idolatrados.