Aprendendo com a história

Vozativa edição 110 – 02 de março de 2005

Quem milita politicamente sabe que muitas tendências disputam entre si os espaços para tentar implementar suas propostas. Isto é natural e não é exclusividade da esquerda ou da direita. Durante muitos anos, estas tendências de esquerda disputaram sindicatos, associações e outras entidades populares. Até aí nada de mau. Muito pelo contrário, esta é a disputa democrática.

O problema surge quando a esquerda ascende ao poder. As tendências se conhecem muito bem, e por muitas vezes, a corrente hegemônica, teme perder espaço e aí comete o erro que a devora. Acaba fazendo alianças com setores mais à direita para garantir que tendências menores de esquerda não a ameacem. Há partidos de esquerda que incentivam a migração de antigos inimigos para dentro das suas fileiras só para garantir votos no parlamento. Ingênua ilusão.

Segundo Darcy Ribeiro, que viveu no Peru esta experiência, as alianças políticas e administrativas que o governo fez, isolaram vários setores de esquerda para garantir uma pretensa governabilidade. O governo acabou realizando uma aliança social-liberal descaracterizando suas próprias propostas de um governo popular e democrático. Também não garantiu no parlamento que as propostas do governo fossem aprovadas pelo fato de existir tal aliança, pois como em quase todos os parlamentos do mundo, o lema que prevalece é o do antigo deputado Robertão (PFL): é dando que se recebe. Para o governo passar uma proposta tem que liberar alguma verba ou aprovar algum projeto de interesse particular.

Os setores liberais, logo que se fortaleceram novamente, graças à ajuda do governo, racharam e passaram a atacar o próprio governo. O desgaste foi tão grande que nas eleições seguintes quem ganhou foram os liberais que radicalizaram para a direita. Daí em diante foram vários governos fascistas, corruptos e anti-sociais, como no período Fujimori.

O mesmo aconteceu na Nicarágua com a Frente Sandinista. Os irmãos Ortega, líderes da corrente hegemônica da Frente, também fizeram alianças com os antigos setores liberais e acabaram por descaracterizar e desmantelar todo um projeto construído na luta, por anos, para criação de um governo popular e democrático. Perderam “feio” as eleições e até agora não conseguiram articular alguma oposição aos liberais.

Temos que estar de olho no futuro, aprendendo com os erros cometidos no passado.

No Brasil, há poucos dias saiu uma charge na imprensa sinalizando que de agora em diante a Câmara dos Deputados dará o tom da política com a antiga marchinha de carnaval, que também inspirou a política Robertão: “Mamãe eu clero, mamãe eu clero mamar …”.

Macunaíma

Uma parte muito interessante da obra Macunaíma, de Mário de Andrade, é o momento em que ele tem que comer a própria carne para sobreviver. O diálogo entre Macunaíma e um pedaço da sua perna é muito engraçado.

Depois da eleição do Severino Cavalcante, a oposição e os vários “aliados” do governo resolveram atacar a Medida Provisória 232. Defensores exclusivos, dentro e fora do governo, dos interesses da burguesia nacional, já bradaram: “se o governo quer dinheiro, que gaste menos”. Ou seja, cortar gastos, e assim como Macunaíma, que coma a própria carne para sobreviver.

A carne somos nós, funcionários públicos e os investimentos sociais. Se alguém sonhava com reajuste espontâneo é bom se preparar para brigar por ele. Os movimentos sociais também vão ter que lutar para disputar cada centavo. A Reforma Agrária, fundamental para solucionar muitos problemas sociais (pois não atinge apenas aos sem-terra) ficará prejudicada, tornando possível a volta da radicalização no campo.

A transposição do Rio São Francisco está garantida. Vai beneficiar algumas cidades e a monocultura de frutas para exportação. A água não chegará ao semi-árido. Lá, os sem-terra, sem-luz, sem-água e sem-dignidade também terão que comer a própria carne para sobreviver.